Skip to main content

Quando você lidou com questões de gênero pela primeira vez?

Como muitas pessoas nesse período de pandemia pelo novo coronavírus, eu busquei refúgio na minha família durante essa longa quarentena. Depois de alguns meses fechada em um apartamento em São Paulo capital, vim junto com as minhas irmãs mais novas passar um tempo na casa do meu pai. E essa convivência e proximidade com elas tem sido muito preciosa. É incrível poder ver o ponto de vista de diferentes gerações sobre assuntos que me tocam profundamente, como as questões de gênero e o empoderamento feminino.

O caso mais emblemático foi com minha irmã caçula. Ela segue tendo aulas à distância e, alguns dias, enquanto dividíamos a mesa de escritório/escola e refeições, a vi inconformada com algumas situações que estavam surgindo durante as classes. Bastante mexida com comentários machistas de alguns de seus colegas, ao longo das semanas e de muitas conversas, pude ver mudanças acontecendo: seu pensamento passou de um inconformismo que não vê saída à uma abertura para o diálogo.

Ela pediu ajuda e reuniu um material sobre masculinidade tóxica, a importância histórica da luta feminista e até mesmo os aspectos antropológicos sobre como estes aspectos são vividos em outras sociedades. Foi lindo e energizante ver o empenho dela em conseguir bons argumentos para o debate e ver a questão de maneira mais ampla.

 

Há 20 anos

Um dos pontos que levantei foi a ausência de qualquer tipo de conversa sobre estes temas na escola época em que eu tinha a idade dela. As questões existiam, mas não eram debatidas. Lembro de sempre me inconformar com o machismo ao meu redor nos sutis “coisas de menino e de menina”, mas o momento de virada que me marcou profundamente foi quando eu tinha cerca de 12 anos e sofri o primeiro assédio que me lembro.

Eu ia a pé para a casa de uma amiga (vantagens de morar no interior) quando um homem em um carro começou a andar devagar do meu lado e a mexer comigo. Eu lembro do desespero, da raiva, do inconformismo que me marcaram nessa e, infelizmente, em muitas situações parecidas que enfrentei a vida toda. Hoje penso em como discussões sobre estes temas dentro da escola poderiam não só ter me ajudado, mas também apoiado os meninos a romperem o ciclo da masculinidade tóxica que também os faz sofrer. 

 

Carta aberta à sociedade

No caso da minha irmã, o tema sobre as questões de gênero envolveu inclusive a direção da escola, chegando até os meninos mais fechados em suas visões. Deixo aqui a carta que ela escreveu para sua escola – e que serve para a sociedade como um todo – com um relato:

“Sou uma menina de 14 anos, estudante de uma escola particular do interior de São Paulo. A maioria dos alunos da minha escola é branca, de classe média alta e teve uma boa educação desde pequenos.

Nos últimos tempos, as pautas machismo e feminismo vem sido muito discutidas em minha sala.

Venho percebendo meninos muito desinformados, trazendo discursos como: ‘o machismo não existe no Brasil’, ‘o feminismo não conquistou nada’, “’ mulher coloca short curto, pedindo para ser assediada’.  Ouvindo esses discursos, me questionei: Quanto desses meninos, não se tornarão homens misóginos, que assediam mulheres?

Sinto como dever da escola debater estas pautas e tentar aconselhá-los. Mesmo não sendo obrigação das mulheres, venho observado que essa função vem recaindo muito para elas. Na minha sala por exemplo, vejo várias meninas empoderadas tentando ajudar meninos a saírem de sua própria ignorância. Mas a questão é, na maioria das vezes, eles não querem ser ajudados.

Outro ponto que venho observando são meninos com opiniões contrarias às da maioria, mas com medo de questionar, por causa do julgamento do seu ciclo social.  Perguntei para alguns amigos se eles já passaram por uma situação similar e todos disseram que sim. Falaram também que se sentem muito mal por não conseguirem dizer nada e tem vontade de sair do ambiente quando uma situação machista acontece.

Na minha sala, mesmo que minimamente, senti um progresso. Sei que com apenas uma discussão não conseguiríamos mudar os pensamentos deles, mas só deste assunto ter sido discutido, acredito que isso provocará questionamentos na cabeça de alguns”, por Adara. 

 

O papel da educação

Minha atuação atual é distante da educação escolar, apesar do papel educador que levamos às pessoas nos territórios (em sua maioria mulheres) nas formações que acontecem nos projetos. Mas, como mulher, posso dizer que é sempre difícil fazer este movimento, dar o passo da desconstrução, do questionamento. Muitas vezes caímos no confronto – o que pode ser necessário em casos extremos, mas que em boa parte cola o interlocutor em uma posição defensiva e de reforço da sua postura. Seguir pelo caminho do diálogo* é difícil, mas é mais do que urgente e necessário que tenhamos espaços qualificados com essa abertura desde cedo. E o ambiente escolar é parte fundamental disso.

Na Raízes, vemos e enfrentamos diariamente em nossos projetos os desafios das mulheres pela luta por equidade de gênero. É sobre isso também o Dona do Meu Fluxo, nosso projeto próprio. É sobre reconhecer as peculiaridades patriarcais que já existem na sociedade antes mesmo da gente nascer, enxergar estes aspectos que nos oprimem e agir pela mudança.

Hoje, para mim, é um alento ver as gerações mais jovens se envolvendo nestas questões de gênero cada vez mais cedo. Deixo aqui também o meu desejo de que as nossas meninas sigam resilientes e que consigamos apoiá-las a romper os ciclos de opressão e machismo em todas as camadas da sociedade!

 

*Uma ferramenta que pode nos apoiar na construção de um diálogo mais qualificado são os Níveis de Escuta da Teoria U, uma das metodologias de Inovação Social que incorporamos em nossa atuação.

Por Tauana Costa