
A discussão contemporânea sobre regeneração ambiental e a imperativa necessidade de construir um futuro harmônico e sustentável tem ganhado destaque global. Este foco é impulsionado por desafios crescentes como as mudanças climáticas, a degradação dos ecossistemas e a escassez de recursos, que exigem uma reavaliação profunda de nossa relação com o planeta. Contudo, é fundamental reconhecer que a regeneração não se restringe ao âmbito ecológico, estendendo-se a outras esferas cruciais da existência, como as dimensões sociais, econômicas, culturais e psicológicas.
O termo “regeneration”, ou “regeneração”, do latim re-generare (“nascer novamente”), possui uma rica e complexa trajetória conceitual. Ele é empregado em diversas áreas do conhecimento para descrever processos de renovação, reparação, restauração ou renascimento. Na biologia, refere-se à capacidade de organismos de reconstruir tecidos ou órgãos perdidos, como a regeneração de um membro em uma salamandra; na teologia, evoca a ideia de um renascimento espiritual ou moral; no urbanismo, descreve a revitalização de áreas degradadas, transformando-as em espaços vibrantes e funcionais; e nas ciências sociais, aplica-se à reconstrução de comunidades pós-conflito ou à revitalização de laços sociais enfraquecidos.
Nesse sentido, a aplicação do conceito de regeneração às relações humanas – e à interconexão intrínseca entre estas e o meio ambiente – torna-se essencial. A regeneração social propicia a recriação de possibilidades de colaboração, empatia e confiança, elementos vitais para o estabelecimento de uma existência plena, harmônica e sustentável.
Em um mundo cada vez mais interdependente e complexo, a capacidade de cooperar e confiar mutuamente é fundamental para enfrentar desafios globais, resolver conflitos e construir comunidades resilientes.
Mais do que uma mera aspiração, a regeneração das relações humanas é uma condição intrínseca à nossa própria sobrevivência enquanto espécie e à saúde do planeta que habitamos, pois a fragmentação social e a desconfiança mútua impedem a ação coletiva necessária para abordar crises existenciais.
A degeneração das relações na modernidade
A preocupação com a qualidade e a estrutura das relações humanas é tão antiga quanto a própria filosofia. Pensadores gregos, como Aristóteles, já exploravam a importância da philia (amizade/amor cívico) para a vida da polis (cidade, vida coletiva) e para o florescimento individual (eudaimonia), indicando uma visão de que a interconexão saudável e a virtude cívica eram essenciais à natureza humana e à prosperidade da comunidade. No entanto, a noção de que as relações podem degenerar e, portanto, precisam ser regeneradas, ganhou proeminência com as transformações da modernidade e o custo que a vida moderna acarreta aos humanos, especialmente através da complexificação das estruturas sociais e econômicas.
Essa degeneração é profundamente analisada por conceitos clássicos de alienação e estranhamento. Karl Marx criticou a alienação socioeconômica do capitalismo, onde o trabalho e o produto se tornam estranhos ao indivíduo, e a competição instrumentaliza as relações humanas, corroendo a solidariedade. Max Weber abordou o estranhamento decorrente da racionalização e do “desencantamento do mundo”, onde a burocratização de normas impessoais sufocam a autonomia e transformam interações em meras transações formais.
No campo psicanalítico, Sigmund Freud revelou o “mal-estar na civilização”, resultado da repressão das pulsões em nome da ordem social, levando a insatisfação e dificultando relações autênticas. Jacques Lacan complementa ao postular que a própria identidade é constituída pela alienação na linguagem e no desejo do Outro, gerando uma divisão que impede uma relação transparente consigo e com os outros. Embora com focos distintos, esses teóricos convergem ao demonstrar como as estruturas modernas (econômicas, sociais e psíquicas) contribuíram para minar a confiança, a empatia e o sentido de comunidade.
Essa base teórica ganha ressonância ainda mais crítica na contemporaneidade, onde a lógica dominante tem imposto um custo severo à saúde mental e física e à qualidade das relações.
O foco exacerbado na produtividade, que instrumentaliza o tempo e a vida das pessoas, e o persistente patriarcalismo, que perpetua hierarquias e desigualdades, exacerbam a alienação e o estranhamento.
Tais fatores dificultam a construção de laços autênticos e empáticos, transformando a regeneração das relações em uma urgência não apenas social, mas um imperativo para o bem-estar individual e coletivo em uma sociedade que, cada vez mais, se sente fragmentada e desconectada.
Caminhos para a regeneração: ética, diálogo e interdependência
Diante do cenário de relações degeneradas e profundamente alienadas, a busca por caminhos para a regeneração torna-se um imperativo, e diversos pensadores contemporâneos oferecem frameworks valiosos. Martin Buber, por exemplo, introduziu a distinção entre a relação Eu-Tu e Eu-Isso: a primeira, um encontro autêntico de reciprocidade e reconhecimento mútuo, contrasta com a segunda, que instrumentaliza o outro. A regeneração, sob a ótica buberiana, exige a primazia do Eu-Tu, um diálogo genuíno que se opõe à reificação e à instrumentalização.
Complementarmente, Joan Tronto desenvolveu a ética do cuidado, que enfatiza a interdependência e a responsabilidade mútua, valorizando o cuidado como prática moral e política central. Esta ética parte da vulnerabilidade humana e da necessidade intrínseca de cuidado ao longo da vida, convidando-nos a reconhecer e sustentar uns aos outros e o ambiente.
Ademais, Bruno Latour desafia o antropocentrismo ao propor que somos “Terrestres” que precisam aprender a “compor o comum” com uma multiplicidade de “actantes”, humanos e não-humanos. Para Latour, a regeneração das relações humanas está intrinsecamente ligada à nossa relação com o planeta, exigindo uma reorientação para Gaia e a construção de novas formas de coexistência. Essas perspectivas, que transcendem a lógica individualista e instrumental, oferecem um robusto arcabouço teórico para re-imaginar e reconstruir as conexões humanas, promovendo um diálogo autêntico, a ética da interdependência e uma profunda re-ligação com o ambiente, essenciais para superar a fragmentação e alcançar uma coabitação significativa e sustentável.
Em face dos múltiplos desafios que caracterizam a era do Antropoceno, da crise climática à proliferação da violência em suas diversas facetas, a regeneração em todas as esferas emerge como um imperativo inadiável. Conforme analisado pelas lentes de Marx, Weber e Freud, as patologias da modernidade, enraizadas em processos de alienação econômica, social e psíquica, fragmentaram as relações humanas, transformando a philia em estranhamento e a convivência em conflito. Contudo, as propostas de pensadores como Buber, Tronto e Latour oferecem um farol para a reconstrução, indicando que a superação da instrumentalização em favor do encontro autêntico, do cuidado recíproco e da interdependência planetária é o caminho para um novo paradigma de existência.
Nesse sentido, priorizar o “Eu-Tu” de Martin Buber, praticar a “ética do cuidado” de Joan Tronto e “compor o comum” de Bruno Latour significa adotar uma atitude intrinsecamente colaborativa. Isso implica considerar o outro – sejam humanos ou os elementos do mundo natural – como parte essencial da própria vida, reconhecendo a interconexão fundamental de todas as existências. Tal postura exige renunciar ao interesse meramente individual em prol de considerações mais amplas, forjando relações baseadas na alteridade e no reconhecimento mútuo, que superem a força do foco em produtividade e as estruturas do patriarcalismo, que têm custado a saúde e a qualidade das conexões.
Repensar a educação para cultivar a empatia
A nível social mais amplo, a concretização dessa regeneração demanda uma profunda transformação paradigmática que reoriente nossas prioridades e práticas cotidianas. Isso se traduz em repensar a educação para cultivar a empatia e a escuta ativa, desenvolver políticas públicas que integrem o cuidado em todas as suas dimensões – da saúde à assistência social –, projetar espaços urbanos que fomentem o encontro e a colaboração, e reorientar sistemas econômicos para o bem-estar e a circularidade. A regeneração, assim, transcende a mera reparação ou sustentabilidade, buscando uma evolução para um patamar superior de saúde e funcionalidade para indivíduos, comunidades e o planeta, construindo um mundo onde as relações são mais resilientes, empáticas e colaborativas.
Embora essas propostas sejam desafiadoras e possam parecer depender majoritariamente de ações governamentais e sistêmicas, a regeneração é um processo contínuo que também se nutre profundamente do engajamento individual.
É crucial reconhecer que a atitude pessoal de cada um, através das relações que cultiva diariamente, possui um poder transformador capaz de gerar um impacto positivo no entorno. Ao abraçar uma visão de futuro onde a interdependência é celebrada e a diversidade é uma força, podemos, coletivamente, pavimentar o caminho para um mundo onde as ações humanas sejam marcadas pela confiança, solidariedade e um profundo sentido de pertencimento – um futuro onde a sustentabilidade ambiental é intrínseca à vitalidade social, e onde a própria vida pode, de fato, “nascer novamente” em toda a sua plenitude.
Por Lizandra Barbuto
Referências
BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução, prefácio e notas Newton Cunha. São Paulo: Centauro, 2001.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. (Obras Completas de Sigmund Freud, v. 18).
LATOUR, Bruno. Facing Gaia: eight lectures on the new climatic regime. Cambridge: Polity Press, 2017.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Tradução Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1.
TRONTO, Joan C. Moral Boundaries: a political argument for an ethic of care. New York: Routledge, 1993.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução e notas Antonio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.