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Comida afetiva: sabores que conectam história, gastronomia e ancestralidade

A comida é muito mais do que a junção de ingredientes em uma panela. Ela carrega memórias, histórias e tradições que atravessam gerações. No conceito de comida afetiva, cada prato pode ser uma ponte entre o presente e o passado, revelando as raízes culturais e familiares de quem o prepara.

Muitos dos ingredientes e técnicas que utilizamos hoje têm vínculos que remontam às práticas dos nossos antepassados. Isso nos conecta com nossas origens, ao mesmo tempo em que compartilha essas heranças com as novas gerações.

Aqui na Raízes DS, acreditamos que através da comida preserva-se a ancestralidade. Em alguns dos nossos projetos, trabalhamos com negócios gastronômicos. E hoje, no nosso papo com beneficiários, trouxemos representantes do Bistrô Empório 77 e da Fábrica de Biscoito do Quilombo São Domingos, para falar com propriedade sobre comida afetiva.

Confira a entrevista a seguir:

Carolina Machado, ou Carola – como gosta de ser chamada -, administra o Bistrô Empório 77, um charmoso espaço gastronômico no bairro histórico do Matozinhos em Itabirito, Minas Gerais. O negócio foi um dos beneficiados pelo Projeto de Desenvolvimento Territorial e Transformação Social de Itabirito – MG, uma iniciativa da Vale, com execução da Raízes.

No início do projeto, o bistrô estava de portas fechadas, funcionando apenas como delivery para almoço devido à pandemia da Covid-19. No processo de incubação, Carola reestruturou a gestão, redefiniu sua comunicação e utilizando a criatividade oferece um cardápio cheio de memórias afetivas e identidade regional.

Raízes: De que maneira o ambiente e a história local influenciam a criação dos pratos e a experiência gastronômica que você busca proporcionar aos clientes?

Carola Machado: Acredito que a história influencia todo processo criativo de qualquer cozinheiro, seja através da cultura alimentar de uma região, de famílias ou de uma determinada atividade econômica. Minas Gerais tem esta característica, nossa cozinha recebeu influências europeias, africanas e dos povos originários. Quando aprofundamos na história e costumes locais, uma caixa enorme de possibilidades e ingredientes também são descobertos e as pessoas adoram saber disso mergulhadas no ambiente que gerou a inspiração.

R: Qual a comida que mais evoca memórias afetivas para você?

CM: A cultura alimentar de um povo conta a história dele através do paladar. Geralmente com preparações simples e cotidianas, aquele angu com um guisado, um tutu com um molho gostoso e ovo por cima, a carne de lata com o sabor inconfundível da banha, mas o que mais ganha meu coração mesmo é o bacalhau com chuchu e angu de fubá de moinho d’água. Mas a carne de porco salgada com chuchu e angu também é muito gostinho da minha infância aqui nesta casa mesmo, ai, difícil demais achar só um prato querido com a vastidão alimentar de nossa região.

R: Como o projeto de desenvolvimento territorial e transformação social de Itabirito contribuiu para o seu negócio?

CM: O projeto foi primordial tanto para a transformação quanto para a retomada das atividades. Sem ele, com o impacto da pandemia no negócio, não seria possível retomar as atividades, já tinha dado como perdido até nosso recomeço através do projeto.

R: Como você escolhe os ingredientes e receitas que melhor representam a culinária mineira e a sua própria trajetória pessoal?

CM: Em primeiro lugar penso sempre em comprar produtos que sejam locais. Hoje com este mundão globalizado, temos acesso a um número enorme de ingredientes, insumos novos e interessantes, gosto dessa fusão. Em nossa mesa, sempre haverá o torresmo, o tutu, tropeiro e frango com quiabo. Agora, por exemplo, estou imersa no mundo das massas, um dos recheios é o de carne de lata de porco caipira com compota de casca de jabuticaba que preparamos aqui. Então, é possível manter tradição, inventar moda e trazer para a mesa sabores inusitados utilizando ingredientes locais e fazendo a roda da economia local girar.

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A Fábrica de Biscoitos do Quilombo São Domingos visa resgatar a tradição culinária da comunidade São Domingos, em Paracatu – MG, por meio da produção artesanal de biscoitos, pães, bolos, roscas e bolachas. A iniciativa conta com um grupo de oito mulheres que produzem as receitas que são passadas de geração em geração e contam a história da comunidade. 

A fábrica também promove o Café no Quilombo, que destaca a tradição culinária da comunidade. O Plano de Desenvolvimento do Turismo no Quilombo São Domingos em Paracatu – MG é uma iniciativa do Sebrae MG com execução da Raízes Desenvolvimento Sustentável que começou em junho de 2023. As ações têm como principal objetivo o desenvolvimento de uma fonte de renda sustentável e que valorize a cultura quilombola local.

Irene dos Reis, uma das lideranças do Quilombo São Domingos contou um pouco sobre essa conexão de comida e ancestralidade presente na comunidade.

Raízes: Quais são os ingredientes e técnicas que vocês mantêm como parte da ancestralidade culinária de Paracatu, e como esses elementos dialogam com a identidade cultural do quilombo? 

Irene dos Reis: A verdade é que a culinária de Paracatu carrega os saberes e fazeres da cultura quilombola. Nós preservamos os ingredientes como milho, mandioca, queijo, pequi, rapadura, melado, amendoim e as técnicas tradicionais como a preservação e o modo de fazer dos nossos ancestrais. Esses elementos reforçam a identidade e resistência da comunidade, mantendo viva a herança ancestral do nosso povo.

R: A comida é um elo poderoso com nossas memórias e raízes. Qual a comida que mais evoca memórias afetivas para você?

IR: Cada um desses alimentos carrega um sabor único e memórias de momentos especiais que vivemos na nossa comunidade, na nossa família. A lembrança do amor das nossas avós vem, seja o pão de queijo quentinho, no bolo de fubá simples e acolhedor, no sabor marcante do arroz com pequi, no frango caipira com angu de milho verde, no mané pelado, no melado com farinha ou mandioca cozida, naquele toque caseiro que traz o sabor e a sensação de casa e família.

R: Como você enxerga o papel da gastronomia local para o fortalecimento da identidade cultural e para a transformação social na sua comunidade?

IR: A gastronomia local fortalece a identidade cultural ao preservar tradições e unir a comunidade enquanto promove a transformação social por meio do empoderamento econômico, valorização de produtos regionais e educação sobre sustentabilidade.

R: Como a preservação dessas receitas e modos de preparo contribui para a visibilidade da cultura quilombola de Paracatu?

IR: Cultura viva! É um ato de resistência e afirmação cultural que contribui para a visibilidade e valorização da rica herança dos nossos ancestrais deixada para essa comunidade e os seus descendentes.

Além de alimentar o corpo, a comida afetiva alimenta a alma! Cozinhar se torna um ato de resistência, onde o resgate de tradições alimentares não apenas valoriza a cultura local, mas também fortalece a autoestima de quem se identifica com essas práticas.

Preservar essas raízes, por meio da comida, é uma forma de honrar a ancestralidade e, ao mesmo tempo, reinventar tradições em um mundo em constante mudança.