
Em nossa última jornada literária no clube do livro da Raízes, mergulhamos em “A Queda do Céu”, uma obra que transcende as páginas para nos convidar a uma reflexão profunda sobre a vida, a espiritualidade e a conexão intrínseca entre os seres e a natureza. Narrado por Davi Kopenawa Yanomami e redigido por Bruce Albert, o livro é um testemunho vivo da sabedoria ancestral Yanomami e um alerta sobre os impactos devastadores da invasão e destruição de seus territórios.
Foram nove meses de leitura e encontros, em um processo que exigiu presença, sensibilidade e disposição para lidar com o desconforto de não compreender tudo de imediato. A obra nos provocou a desacelerar, ouvir com mais atenção e deixar que as palavras ecoassem antes de tentar traduzi-las com os filtros do nosso olhar ocidental. Foi uma travessia coletiva e transformadora.
O que debatemos?
Durante nossos encontros, emergiram discussões sobre a importância da demarcação das terras indígenas e a luta contínua pela preservação de espaços que são, ao mesmo tempo, sagrados e fonte de vida. Refletimos sobre como a oralidade, fio condutor dos saberes ancestrais, tem sido fragilizada diante das pressões do mundo contemporâneo e da lógica da aceleração.
A perda de confiança na escuta e na transmissão de histórias entre gerações ecoou em nós como um espelho. Percebemos como isso também nos atravessa, mesmo longe da floresta — nos nossos contextos urbanos, acadêmicos e afetivos —, onde tantas vezes se perde o tempo do encontro e do cuidado com a palavra.
A espiritualidade Yanomami, profundamente entrelaçada à floresta e a todos os seres que nela habitam, nos convoca a repensar nossa forma de nos relacionar com o invisível, com o tempo e com o sagrado. As práticas xamânicas, os rituais com a yãkoana e a presença dos xapiris revelam uma cosmologia viva, complexa e generosa, que desafia as visões ocidentais e nos convida a cultivar uma escuta mais sensível, comprometida e respeitosa.
Como grupo, sentimos que essa escuta exige entrega. Pede pausa. Pede um desapego das certezas, um outro tempo. E nos lembra que aprender — de verdade — é também se deixar tocar, se abrir à transformação e reconhecer que há saberes que não cabem nos livros, mas sim nas relações.
Autonomia e resistência: a força do povo Yanomami diante dos desafios contemporâneos
Os encontros do clube foram espaços de escuta ativa e partilha generosa. Surgiram reflexões potentes sobre a relação entre vida, morte e espiritualidade. Um dos trechos que mais tocou o grupo trouxe à tona a ideia de recusar a morte e como o apego molda nossos vínculos, escolhas e formas de estar no mundo. Foi um convite a olhar para dentro, para os próprios medos e para a maneira como lidamos com o fim das coisas, não só no plano físico, mas também nos ciclos que encerramos na vida cotidiana.
Debatemos a função dos xamãs e o papel dos xapiris como guias e curadores, ressaltando a delicadeza e a profundidade da relação entre mundos visíveis e invisíveis. A cosmologia apresentada no livro nos levou a refletir sobre o compromisso e a responsabilidade que envolvem o contato com saberes ancestrais.
O caminho xamânico, como narrado por Kopenawa, foi percebido como um mergulho nas sombras e também como um processo de conexão profunda com a floresta, os espíritos e o coletivo. Houve uma sensação de reverência, quase um chamado a desacelerar para poder, de fato, escutar.
Viver do próprio jeito: diversidade, dignidade e inteligência coletiva
Falamos ainda sobre a organização social dos Yanomami e sua busca por autonomia diante de intervenções externas. As trocas revelaram como o povo indígena resiste à imposição de estruturas que não dialogam com suas realidades e reafirma o desejo de viver segundo seus próprios modos de ser. A diversidade entre as aldeias, os idiomas falados, a relação com os bens de consumo e com o território foram percebidos como expressões de uma inteligência coletiva que valoriza a pluralidade.
E refletimos como esse desejo de autonomia é, ao mesmo tempo, uma defesa e uma afirmação de dignidade — um lembrete de que não basta proteger a floresta: é preciso também reconhecer os saberes e decisões daqueles que a habitam.
Ao final dessa leitura, carregamos conosco não apenas o conhecimento adquirido, mas uma transformação interna que nos impulsiona a agir com mais consciência e responsabilidade.
A sabedoria Yanomami nos ensina que cuidar da Terra é, acima de tudo, cuidar de nós mesmos e das futuras gerações. Escutar o que o céu e a floresta têm a dizer, mesmo quando a linguagem nos escapa, é um exercício contínuo de presença e respeito.