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“A Terra Dá, a Terra Quer”: a semente que segue crescendo em nós

No nosso Clube do Livro, ler é sempre um encontro: com ideias, com mundos que não são os nossos e, principalmente, com formas de existência que nos convocam a repensar o presente. Em nossa leitura mais recente, mergulhamos em A Terra Dá, a Terra Quer, obra essencial do pensador, ativista quilombola e agricultor Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo.

No livro, Nego Bispo apresenta a contracolonização como chave para compreender modos de vida que antecedem e desafiam a lógica colonial. A partir do Quilombo Saco Curtume, ele provoca um olhar mais atento sobre nossas formas de habitar, cultivar e nos relacionar com a terra. Com uma linguagem de palavras que germinam, o autor questiona a cosmofobia urbana, tensiona as disputas de nomeação e resgata saberes transmitidos pela oralidade, costurando temas como território, trabalho, clima e ciclo da vida em uma visão diversa e profundamente enraizada.

Foi a partir desse mergulho que, ao longo de dois encontros, nos permitimos abrir debates importantes, daqueles que ampliam o olhar e fazem a gente reconsiderar o modo como se move pelo mundo.

Linguagem, território e o afastamento da terra

A leitura nos provoca a olhar para a “guerra das denominações”, conceito que Nego Bispo traz para revelar como as palavras moldam realidades e apagam histórias. A partir disso, abrimos a conversa sobre como a linguagem é um território político, um espaço de disputa e também de cuidado.

Esse debate logo se conectou aos modos de existir nos territórios tradicionais: a arquitetura das casas quilombolas, a centralidade da cozinha, o quintal vivo, a circulação das pessoas. Nada é aleatório. Cada escolha espacial reforça vínculos, sustenta práticas comunitárias e preserva saberes. Percebemos como muitos projetos urbanos, mesmo os bem-intencionados, ignoram essas dinâmicas e acabam desenhando futuros desconectados das relações que importam.

O livro também nos fez refletir sobre o impacto da urbanização e das tecnologias na vida das comunidades tradicionais e de como isso pode causar consequências como a perda do imaginário, a interrupção de práticas de cultivo, a chegada de padrões de consumo que desmontam relações antigas com a terra.

Enquanto buscamos na cidade formas de “voltar à natureza”, muitas comunidades são empurradas para longe dela. Entre memórias pessoais, vivências em campo e inquietações coletivas, discutimos como esses deslocamentos silenciosos modificam tanto o território quanto o nosso jeito de habitar o mundo.

Contracolonialidade, cosmofobia e a lembrança de que somos natureza

Entre as ideias que atravessam o livro, a contracolonialidade aparece como uma virada de chave: não é uma resposta ao colonialismo nos moldes coloniais, mas um modo de viver que vem de antes, sustentado pela relação direta com o Cosmos. Nos povos tradicionais, o humano não está acima da natureza — está dentro dela. Faz parte. É mais um vivente entre muitos.

Essa visão contrasta com a cosmofobia, conceito que Nego Bispo usa para nomear o medo do cosmos que estrutura a sociedade colonialista. Um medo que cria distâncias, separa o humano do ambiente e transforma a cidade em um espaço artificial, pensado apenas para uma única forma de vida. A cidade vira território de controle, de exclusão e de ruptura com os ciclos naturais.

Nesse contexto, o título A Terra Dá, a Terra Quer ganha profundidade: não fala de troca mecânica, mas de reciprocidade. A terra oferece, e quem recebe precisa devolver, não como obrigação, e sim como parte do movimento circular da vida. É o oposto da lógica capitalista do acúmulo. É uma ética que lembra que nada existe sozinho e que toda relação envolve cuidado, limite e devolução.

Ao final dos encontros, ficou claro que esse livro não se encerra em suas páginas. Ele provoca um deslocamento generoso, desses que ampliam o olhar e convidam a outros passos. Há uma leveza na escrita de Nego Bispo que torna as complexidades acessíveis, sem perder profundidade. A sessão nos incentivou a continuar a leitura, a explorar outras obras do autor e a fortalecer o hábito de ler coletivamente. 

Porque certas narrativas não apenas informam, elas germinam. E essa, sem dúvida, segue crescendo em nós.