Aquela parte do filme Bacurau em que o povoado some do mapa poderia muito bem ser mais um dia na rotina aqui da Raízes. Quando eu estava na graduação em Geografia e, à época, ainda era estagiária (hoje sou gestora de projetos e doutoranda), meu sonho era um só: quero ir pro campo! Nos referimos a campo como a maioria das pessoas nascidas ou vividas nas metrópoles. É na verdade sair de casa, ir para as áreas mais rurais e remotas do território brasileiro, visitar as comunidades beneficiadas por nossos projetos.
Mal sabia eu que alguns anos depois o universo me traria tantos desafios em desvendar os campos, já que a Raízes atua por boa parte dele. Usamos basicamente as diversas formas possíveis de transporte para chegar nas comunidades, como carro, ônibus, trem, avião e, por que não?, barco.
Em Minas, o trem é “bão” mesmo
Atuamos no estado com a maior malha viária do país: Minas Gerais. Somando todas as rodovias federais, estaduais e municipais, o estado possui sozinho 16% delas. Com isso, os desafios da manutenção e segurança destas vias também é maior. São três projetos localizados na porção leste do estado de Minas Gerais, municípios que estão localizados na Bacia do Rio Doce. São eles Itabira, Periquito e Resplendor.
Para acessar esses locais existe uma rodovia passando pelos três ou próximo a eles, a BR 381, que está em obras de duplicação há alguns anos e deve continuar assim por mais alguns. Uma alternativa ao transporte rodoviário, é o ferroviário. Sim, a Vale possui um trem (trem de verdade, não o “trem” da tradicional expressão mineira) de passageiros que liga Minas Gerais ao Espírito Santo, passando por incríveis 42 municípios e percorrendo 664km.
A primeira vez que a logística se mostrou desafiante para mim foi na ocasião em que precisei pegar um trem de Belo Horizonte para Periquito. No dia seguinte, peguei um ônibus para Governador Valadares. E, no outro dia, um ônibus para Resplendor, depois outro para Vitória e, por último, um avião pra Belo Horizonte. E essa nem é a logística mais complicada dos nossos projetos.
Do ferro para as hidrovias
O projeto Dona do Meu fluxo, que doa coletores menstruais para comunidades de mulheres que possuem pouco acesso às novas alternativas, é ainda mais desafiante. A última edição, que aconteceu em julho desse ano no Pará, nos levou pra localidades que realmente estão fora dos mapas, para uma geógrafa isso é um pouco frustrante, já que o mapa é o nosso principal aliado em campo. As hidrovias seriam as nossas principais vias de acesso às comunidades.
Pegar um barco no Pará para chegar a uma comunidade foi uma experiencia indescritível e maravilhosa, quem dera se tivéssemos essa alternativa, mas no caso de Minas Gerais, como dito anteriormente a rodovia é a nossa principal alternativa, que hoje conta com “algumas pedras” no meio caminho. Essas “pedras” são motoristas imprudentes, caminhões pesados e muitos, muitos buracos. Quando você passa grande parte do seu tempo de trabalho viajando, você passa a se preocupar cada vez mais com a sua integridade física, e precisa confiar que o outro esteja dirigindo de forma segura, o que nem sempre acontece. Felizmente nunca sofri um acidente, nem ninguém na nossa equipe, mas é algo que sempre traz preocupação por inúmeros fatores.
O carro é a nossa principal alternativa de transporte para nos levar até as comunidades, algumas localizadas a vários quilômetros do núcleo urbano, ligados por estradas de terra. A população local muitas vezes só tem uma alternativa do transporte disponibilizado pela prefeitura, e que nem sempre funciona. Ora é um pneu furado, ora é o combustível que acabou.
Muitos aproveitam o ônibus que leva os estudantes para as escolas para resolverem suas pendências na cidade. Nessas condições, ainda precisam esperar o turno estudantil terminar para retornar às suas casas da mesma forma. Uma realidade por vezes distante de quem vive nas metrópoles, por mais que a mobilidade urbana também tenha seus percalços aqui no Brasil.
Como geógrafa, viver essas experiências no território brasileiro tem sido engrandecedor para minha alma e para meus estudos, pois me fazem enxergar e conhecer os diferentes Brasis da única maneira possível: na prática. Em tempos de fake news, ver as coisas com os próprios olhos, assim como pisar, tocar e experenciar faz toda a diferença.
É preciso muita criatividade para driblar as dificuldades, mas no final é sempre gratificante. Tem sempre um “cafezim” te esperando, não importa onde vá.
[Ainda dentro desse tema, falando em Bacurau, vale e leitura desse artigo da Jussara Rocha].